Koe no Katachi: Como criar personagens profundos

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A Silent Voice (Koe no Katachi) foi um dos filmes mais prestigiados do ano de 2016. Adaptado do mangá de mesmo nome e vencedor do Tokyo Anime Awards como melhor filme e melhor roteiro, o filme conversa sobre bullying, depressão e relações sociais. Koe no Katachi é um exemplo entre várias obras que podem inspirar novos escritores a criar personagens tão tridimensionais quanto aqueles, os quais nos apegamos tanto por serem como nós.

Se você está enroscado com seus conflitos ou não consegue fazer um personagem que realmente seja convincente, pegue seu café e sua bolacha de maizena: vamos conversar um pouco sobre a profundidade dos personagens — e como tudo isso, no final, é bem mais simples do que parece.

Então, vamos ser amigos? Talvez essa postagem contenha spoilers.


CRIANDO PERSONAGENS: O BÁSICO


Vamos começar pelo básico. Como já vimos na postagem da Yumi, há algumas perguntas que podemos fazer antes de avançarmos para camadas mais profundas do personagem. É interessante começar definindo as características físicas e algum início de características psicológicas; na maioria das vezes, comece com características que fazem seu personagem ser diferente dos outros. Se isso não for bem resolvido aqui, nós vamos enfrentar problemas de descrições exageradas sobre características irrelevantes ou muito adiantadas, como: "Ele era alto, magro, tinha 17 anos, odiava a vida que tinha, principalmente o tio que batia nele e ele gostava muito de jogos de RPG".

Ou trechos que simplesmente não dizem nada acerca do personagem, ao contrário, fazendo com que não nos interessemos por acompanhá-lo.

  • Ela era uma garota comum. Vestia uma calça comum preta rasgada, um uniforme da escola por cima com um lacinho vermelho. Ela tinha uma vida normal.

Você deve ter personagens diferentes. O que faz uma história ser interessante é justamente o que ela apresenta de novo, não o que já vimos em tantos outros lugares. Por isso, os pequenos detalhes do personagem, que podem parecer básicos demais, podem também fazer toda a diferença mais pra frente. 

Considere a garota comum e pense no que poderia fazê-la diferente: não precisa ter cores de olho diferentes, um cabelo roxo, vestir roupas verde-fluorescente. Talvez ela sempre vista uma blusa verde. Talvez a blusa já esteja muito usada, mas ela usa-a ainda assim. Contudo, por qual motivo? Aparentemente porque ela gosta de verde. Mas nós sabemos que não é só isso. 

Ou, ainda, talvez nossa garota ande com um caderno de anotações pra cima e pra baixo, nunca largando ele em hipótese alguma. Ela pode ser desenhista ou escritora. Ou ela pode, assim como nossa personagem de Koe no Katachi, ser surda e necessitar de comunicação escrita.


Perceba como detalhes muito objetivos, como a altura, peso ou cor do carro não importam. O legal de conhecer um personagem é ficar pensando sobre quem ele é, o que ele pensa, o que ele faz. Mas para que isso aconteça, primeiro ele precisa instigar isso. Brayan, em Estrela Morta, possui um colar bastante importante. Artemísia possui uma espada lendária. O Fatou, de Borboleta na Tormenta, tem uma "aberração de nome". E o seu personagem: quem ele é e o que o faz diferente dos outros?

Lembre-se: o básico sempre será importante, e você, autor, poderá utilizá-lo onde menos imagina.

AS QUATRO CARACTERÍSTICAS


Agora você já entendeu com o que está trabalhando, afinal, criou toda uma base interessante para seus personagens. Entretanto, algumas dessas diferenciações te levaram para um caminho mais subjetivo — mais psicológico. Então é agora que a gente vai começar a brincar de verdade. Para que seu personagem deixe de ser essa folha de papel A4 cheia de informações e passe a ser algo realmente crível, você precisa entender que personalidade não substitui profundidade; quando isso acontece, nós temos problemas. Vamos deixar de lado a cor de pele e os eventos traumáticos em ordem cronológica: o objetivo, a motivação, a crença e a origem da crença serão nossos guias em busca da tridimensionalidade.

primeira característica: o objetivo


A primeira parte é, também, a mais simples. O objetivo é, basicamente, o que o seu personagem quer. Ele pode ser algo bem simples ou complexo, mas deve sempre ser identificável. Isto é, deve ficar claro quando ele está se aproximando de sua meta ou colaborando com ações que o aproximem dela. Caso o objetivo seja muito abstrato ou aberto, não muito específico, você corre o risco de fazer seu personagem ficar rodando em círculos.

Para que o objetivo fique claro, faça o personagem sempre buscá-lo. Ações que levam ao objetivo específico lembrarão o leitor que seu personagem deseja algo e não o fará se perguntar por que raios aquele personagem está fazendo aquela coisa naquele momento. Em Koe no Katachi, Shouya deseja se reconciliar com Shoko. Em Estrela Morta, Brayan deseja se tornar um Amaldiçoado. Em Min-D, Amber deseja ser um cidadão da classe alta. Perceba como é fácil identificar quando algum deles está fazendo algo que os move para mais perto do objetivo: eles são claros e definem os rumos da história.

segunda característica: a motivação


Agora vamos adentrar ainda mais na cabeça do personagem: por que ele quer o que ele quer? 
Motivação é o que faz o seu personagem ir atrás de um estado emocional específico. É o que faz seu personagem andar e dar um passo a mais na direção de seu objetivo que pode assumir qualquer forma (desde raiva até felicidade). Quando falamos sobre motivação, estamos falando de algo muito mais profundo; afinal, ninguém se importa com um personagem que fica pulando de motivação rasa para motivação rasa.

Um detalhe necessário é que a motivação vem antes da história. Ou seja, seu personagem deseja alguma coisa antes dele realmente entrar em um processo para conseguir. Vamos dar um exemplo: em Min-D, Amber já queria pertencer à elite antes de ingerir a pílula (ou ter essa ideia). Ele não engoliu o negócio e despertou um desejo interno para ser da nata da sociedade, mas, sim, isso veio antes; afinal de contas, seu personagem teve uma vida antes de sua história ter início.

Por fim, vamos fazer uma diferenciação. O objetivo define o que o seu personagem quer por razões emocionais. A motivação define, emocionalmente, por que o seu personagem quer. Em síntese:

Objetivo: Shouya deseja fazer as pazes com Shoko.
Motivação: Shouya sofreu tanto devido ao seu passado com Shoko que agora, independente, deseja desfazer todo o mal que causou quando criança.

Caso seu objetivo e motivação estejam muito confusos ou parecidos demais, você provavelmente terá dificuldades em fazer seu personagem evoluir através de obstáculos. Ficará remexendo os neurônios para encontrar algo que, no final, não parecerá natural porque será incompleto. Criar uma história em que alguém quer reatar laços com outro alguém é demasiado vago e seria bem difícil fazer algo interessante somente com essa premissa. Todavia, quando justificamos esse desejo através de "ele deseja desfazer todo o mal após sofrer com isso", abrimos um leque muito maior de possibilidades.

Como ele é motivado por um desejo de mudança um tanto quanto egoísta (ao sofrer e, somente então, agir), talvez ele precise se aliar com outros que também passam por isso.

Ou, como ele é movido pelas consequências dos atos de seu passado, talvez ele odeie tanto a si mesmo que vê como única saída de redenção desfazer o que mais lhe causou mal: fazer mal a outro. Caso ele não consiga, não vê mais significado para uma existência que só causa dor para aqueles que estão à sua volta e que, por isso mesmo, preferiu não dar ouvidos: ele não ouviu, não foi ouvido e agora, ouvir só lhe causa mais sofrimento.

Veja como um personagem simples está tomando forma! Mas calma que ainda não acabou.


terceira característica: a crença escondida


Abaixo da motivação, há algo ainda mais profundo. A motivação do seu personagem é formulada a partir de algo que ele pensa sobre si mesmo, sobre o mundo ou uma mistura de ambos. Isso é nossa crença escondida: poucos, ou ninguém além do seu personagem, conhecem esse ponto de vista.

A crença escondida é nosso porquê do personagem ter aquela motivação. Se, em Min-D, a motivação de Amber era ter uma vida confortável e estável (e por isso deseja tanto passar no teste), por que ele deseja isso? Bem, porque ele vê o pai nas condições de um homem de classe baixa e conhece todos os desafios de levar uma vida dessa maneira: porque ele sabe que, naquela sociedade, pessoas pobres não são aceitas e a pobreza leva a um estado de instabilidade e desconforto.


Temos nossa crença escondida, mas ainda não acabou. Há uma categoria abaixo: a origem da crença. 


característica final: a origem da crença escondida


Chegamos na camada mais profunda do abismo. Aqui, estamos lidando com algum evento ou situação muito importante na vida do personagem que o levou a certa maneira de ver o mundo. Mas entenda que essa situação pode ser qualquer uma, em qualquer espectro: positiva ou negativa. Normalmente, as origens de crença estão pautadas em situações realmente desconfortáveis, como transtornos mentais, abusos, abandono, rejeição, etc.

Em Koe no Katachi, vivenciamos situações de bullying quando os personagens são crianças. Então, presenciamos a rejeição que vem através disso (tanto para Shoko quanto para Shoya), o desenvolvimento de transtornos sociais e psicológicos (sociofobia e depressão) e crises suicidas.

A crença escondida de Shoya, por exemplo, seria algo próximo de "causar tanto mal a todos me fez acreditar que sou alguém pior." Isso vem justamente dele ter passado e sofrido bullying, então desenvolvido transtornos que agora o fazem ver a si mesmo como alguém que só separa as pessoas e não merece estar junto delas, sendo sua única chance de provar para si mesmo que ele tem salvação a reconquista da amizade de Shoko. Essa pode ser a origem escondida do nosso personagem.
Conhecer a Origem da Crença é importante para que o leitor sinta cada vez mais afeto pelo personagem e realmente simpatize com ele. Entendendo de onde o comportamento vem, fica mais fácil compreendê-lo e, então, criar empatia pelo personagem.


recapitulação e a tridimensionalidade 

Calma que já estamos chegando no fim. Então, para criar um personagem tridimensional, comece com: 

  1. O ObjetivoÉ a conquista básica que o seu personagem deseja alcançar.
  2. A Motivação: Essa é a razão emocional que move seu personagem a querer o objetivo.
  3. A Crença Escondida: É o que constrói a motivação do personagem.
  4. A Origem da Crença Escondida: Esse é o evento que causou o desenvolvimento da crença do seu personagem.
Por fim, analisando cada uma dessas categorias, conseguimos perceber que há três dimensões que formam tudo o que falamos até agora: a física, a social e a psicológica.

Na dimensão física, temos um personagem que se parece diferente da maioria em qualquer aspecto que seja. O que ele possui define grande parte de quem ele é, sendo uma peça essencial quando tudo parece perdido, para você ou para ele. É uma fonte de conflito externo.

Na dimensão social, temos os relacionamentos do personagem. Aqui, estão envolvidos seus familiares, amigos, professores, cachorro, gato e passarinho. É nesse núcleo de personagens em que ele desenvolverá laços e se mostrará quem realmente é. É uma fonte de conflito externo também.

Na dimensão psicológica, temos um personagem que sempre quer algo. Só que, para definir o que quer, ele reuniu sua coragem, seus medos e seus traumas durante toda a vida. É na dimensão psicológica em que teremos o personagem batalhando com si e com o mundo para se provar digno.

Porque, nos fim das contas, é isso o que é um personagem tridimensional: alguém que funciona no meio com as interações (sociais, físicas e psicológicas) que ele tem. Abaixo disso, temos tudo o que foi dito anteriormente. Agora é sua vez. Crie personagens 3D e faça com que eles não tenham mais uma voz silenciosa.



A penny for your thoughts..

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2 comentários

  1. Ei carinha, tem um "que" duplicado na recapitulação, mais especificamente,em A Origem da Crença Escondida.

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    1. Obrigado! Foi um erro que que passou despercebido, mas tudo já voltou para os conformes.

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