Vidas ao Vento (2013) foi o último filme de Hayao Miyazaki, aclamado diretor e roteirista do Studio Ghibli. Nesse longa, acompanhamos a trajetória de Jiro Horikoshi, um designer e engenheiro japonês conhecido por criar o avião de combate mais potente e mortífero da Segunda Guerra Mundial: o Mitsubishi A6M Zero. Contudo, Jiro possui uma motivação diferente. Seu fascínio por desenhar e criar aviões vem justamente do fato de ele ser míope, o que lhe impede de ser um grande piloto. Após sonhar com Giovanni Caproni, um engenheiro aeronáutico italiano e sua futura grande inspiração, o personagem decide que projetar um avião e fazê-lo voar seria a sua nova meta de vida.
Nessa postagem, vamos conversar um pouco sobre o papel da inspiração na vida do artista, da necessidade constante de inovação, e dos problemas que surgem quando a fantasia acaba dando as caras com a realidade.
"Aviões não são armas de guerra. Eles não foram criados para fazer dinheiro.
Aviões são lindos sonhos que os engenheiros transformam em realidade."
OS MESTRES DO OFÍCIO
Durante a Idade Média, surgiram as corporações de ofício. Essas organizações reuniam os artesãos que desempenhavam uma mesma profissão e tinham como objetivo de regularizar diversas atividades e defender os interesses dos artesãos. Mas o detalhe que mais no importa aqui é que as Corporações de Ofício eram ambientes de aprendizado do ofício e de estabelecimento de uma hierarquia do trabalho. A própria organização interna das Corporações de Ofício era baseada em uma rígida hierarquia, composta por Mestres, Oficiais e Aprendizes.
Quando alguém entrava em Corporação, obrigatoriamente entrava como um Aprendiz. A pessoa não recebia salário por suas atividades e estava lá somente para aprender. O aprendizado poderia durar até doze anos e só depois o Aprendiz atingia a condição de Oficial, quando passava um tempo colocando em prática o que tinha aprendido, oficializando seu conhecimento. E, para que pudesse ser categorizado como um Mestre, era necessário pagar uma taxa e passar por uma prova rigorosa, que ficava cada vez mais difícil conforme o tempo passava e a Idade Média ia chegando ao fim. Ser um Mestre significava ser o dono do local de trabalho, das ferramentas, das matérias-primas e, principalmente, do conhecimento: a posição de Mestre do Ofício era social e economicamente gratificante.
Paralelamente, isso acontece ao começarmos a caminhar no mundo da escrita. Há tantos tipos de livros, tantas histórias diferentes, tantos mundos que podem ser criados, tantos personagens a serem conhecidos, tantas formas de falar algo de formas inovadoras! Mas somos somente um. Precisamos escolher, em um primeiro momento, aquilo que mais gostamos de fazer (no caso, que tipo de estrutura narrativa mais nos agrada): é preciso escolher uma das inúmeras Corporações. Você pode participar da Corporação de Mistério, de Fantasia, de Cyberpunk, de Drama ou até de Suspense. Mas, independente daquela que você escolha, você começará como Aprendiz.
O caminho do Aprendiz não é fácil e não foi feito para sê-lo: é o início, afinal de contas. Você sabe nada ou pouca coisa dessa Corporação, estando ali justamente para se aprofundar dentro da área de conhecimento que deseja trabalhar com. E mesmo que pense que sabe de muita coisa, na verdade, você está em um patamar igual ao de todos os outros Aprendizes; alguns sabem um pouco mais, outros um pouco menos, outros de nada sabem. Mas todos eles são somente aprendizes.
A tarefa do Aprendiz é acumular conhecimentos teóricos para usar mais adiante. É nesse começo em que você deve (ressalto o verbo dever) buscar fontes diversas para beber. Ainda que esteja escrevendo um gênero qualquer, é sua obrigação conhecer o que distingue seu estilo dos outros; sua narrativa das outras; seu mundo de outros mundos que existem por aí nas milhares páginas impressas todos os dias. Não há como avançar sem conhecer muito bem o que você está fazendo. E o que você, escritor, faz, engloba muitas outras coisas além de somente um ideal de Mestre (e história).
A inspiração é essencial para que possamos dar os primeiros passos. Todavia, depois que você começa a andar com as próprias pernas, é hora de construir seu próprio conhecimento. É hora de ser o Oficial de seu próprio progresso. É hora de largar Caproni e desenvolver-se o próprio Horikoshi.
COMECE PARECIDO, DESENVOLVA DIFERENTE
O processo de construção de estilo é demorado, penoso e cheio de reviravoltas. E, ainda mais, continua concomitante com a construção do Aprendiz. Ou seja, uma vez que você já tenha tido contato com outros autores além do seu Mestre Favorito, é necessário continuar aprendendo técnicas com aqueles que você ainda não conhece, ao mesmo tempo em que aplica o que já aprendeu para ver se está bom, se combina com você ou apenas se é suficientemente decente para continuar existindo.
No processo de desenvolvimento da Voz do Escritor (que nunca acaba, por isso é um processo), você coloca à prova todas as referências de construção de mundo, de estilo, de como-fazer-diálogos e como-fazer-descrições, de maneiras de brincar com as palavras e até de jeitos diferentes de manejar a pontuação. É aqui que a diferenciação começa: não importa se você se inspirou em Graciliano Ramos ou em William Shakespeare. O que importa é se você aprendeu alguma coisa com suas referênciaS para que conseguisse criar algo bom e original, do seu próprio jeito.
É comum ouvir de autores-aprendizes-que-se-acham-mestres que sua prosa foi baseada em um tipo de autor e, por isso, não pode nunca ser alterada. Ela deve permanecer daquele jeito, com todos os erros crassos e facilmente identificáveis, que de nada auxiliam no desenvolvimento da história; porque alguém, décadas atrás, fez a mesma coisa e deu certo. Ou porque aquele é seu escritor favorito. Ou qualquer outra desculpa meia-boca que seja. Mas não estamos em décadas atrás. Esse Mestre que mudou algum aspecto da escrita não começou achando que ao copiar (ou se inspirar além da conta em) determinado autor, chegaria a algum lugar. Muito provavelmente ele continuou aumentando seu repertório cultural (em seu papel de Aprendiz) e colocando seu conhecimento em prática (como um bom Oficial), mudando algumas coisas aqui, adequando outras ali.
O desejo de mudança precisa existir, ainda que você não ligue muito para ele. Do contrário, quem ficará interessado em uma prosa que repete a mesma fórmula e não tem a coragem de inovar? Autor que diz se inspirar em alguém, mas que não tenta mudar(-se), faz seu Mestre se revirar no túmulo: a grande lição que qualquer um deles deixou é a de nunca seguir a mesma fórmula. Grandes nomes da literatura, do cinema, da ciência, começaram igual para fazer diferente. No começo, tinham consciência de sua fraqueza, de sua posição como meros Aprendizes. E tentando, falhando e mudando, inovando, jogando bolhinhas de papel no lixo até não couber mais e elas continuarem indo pra lá; é que conseguiram fazer algo minimamente aceitável para os padrões da época.
O Mestre que você tanto se orgulha de seguir com afinco foi criado para ser passageiro. Esse jeito de começar a história, como Kafka; de trabalhar personagens, como Clarice Lispector; de criar tensão, como Lovecraft; ou da construção de mundo grandiosa de Tolkien. Nada disso veio do nada e muito menos permaneceu assim. E, ainda assim, você quer continuar criando aviões iguais a todos os outros? A fórmula pode ser boa, mas existem outros muito mais contemporâneos por aí. E são esses, com certeza, que terão o apreço de serem observados com um pouco mais de cuidado (se forem bons, é claro).
O Mestre que você tanto se orgulha de seguir com afinco foi criado para ser passageiro. Esse jeito de começar a história, como Kafka; de trabalhar personagens, como Clarice Lispector; de criar tensão, como Lovecraft; ou da construção de mundo grandiosa de Tolkien. Nada disso veio do nada e muito menos permaneceu assim. E, ainda assim, você quer continuar criando aviões iguais a todos os outros? A fórmula pode ser boa, mas existem outros muito mais contemporâneos por aí. E são esses, com certeza, que terão o apreço de serem observados com um pouco mais de cuidado (se forem bons, é claro).
A inspiração em um Mestre não pode reger sua escrita. Pelo contrário, ela deve ser o ponto de partida para que você pense sozinho e pelo menos tente fazer algo melhor ou igualmente bom. E, ainda que não o seja, você sempre pode usar seu conhecimento de formas diferentes (por isso é tão importante ter referências!) e começar mais uma vez. Ninguém disse que era fácil, mas ninguém disse também que só havia um jeito de fazer.
NO FINAL, É TUDO SOBRE DIMINUIR
Na relação de Mestre-Aprendiz tradicional, os dois sempre aprendem e ensinam um para o outro, sendo Oficiais do Ofício o tempo todo, ao colocar o conhecimento do outro à prova. E o que acontece quando alguma das partes faz algo errado? Simples: ela aprende que aquele não é o jeito certo.
Mais do que se inspirar em alguém ou alterar sua forma de escrever baseado em inúmeras referências, a escrita inspirada em Mestres tem que diminuir a frequência dos erros cometidos. Em Vidas ao Vento, a missão de Jiro é objetiva, mas nem tanto a ponto dele não notar que o resto do mundo está mudando a sua volta. Para o nosso engenheiro, o mundo andava para frente enquanto o Japão ficava para trás: eles faziam seus aviões de madeira, enquanto todos usavam o metal. Como eles conseguiriam competir com outras potências, sendo que até mesmo a economia japonesa passava por uma crise? Ao conseguir um trabalho na Mitsubishi, Horikoshi vai para a Alemanha aprender a tecnologia de lá, entender a dinâmica de produção e, só então, voltar ao Japão e realizar seu sonho no meio de 1920 e 1930: quando o mundo se preparava para a Guerra. O lindo sonho de Jiro se tornava um pesadelo movido a lágrimas e sangue no campo de batalha. Aviões que se tornam justamente o que seu engenheiro menos queria.
Algumas vezes (se não a maioria delas), seus sonhos de escrever aquela trama fantástica vão por água abaixo quando realmente pegar no papel. Toda a esperança que você tinha em construir um belo mundo vai embora, afinal de contas, nem sempre temos controle sobre nossa própria escrita (é o que alguns dizem). Mas da mesma forma que o vento guiava os sonhos de Jiro e os pesadelos dos inocentes, também foi o vento quem levou Horikoshi à sua amada, a qual não conseguia respirar muito bem. Mas enquanto ela pudesse respirar, ela deseja continuar a viver.
Enquanto você receber reprovações, há sempre uma chance de fazer melhor e não insistir no seu erro. Uma chance nova de mesclar seus conhecimentos com o de seu Mestre, assim como Jiro fez com Caprini e seus colegas da Alemanha. Uma chance de começar de novo, depois de jogar inúmeras ideias ruins no lixo, movidas pelos ventos da guerra. É assim que o escritor deve se inspirar em seus Mestres: aprendendo e não idolatrando, lutando com eles e entendendo seus erros e as tradições para que, no futuro, possa tentar (ressalto o verbo tentar) fazer diferente. É tudo sobre diminuir seu ego, sua inspiração, sua confiança e seu medo de errar.
Por isso, pare de se esconder atrás de títulos. Encare que você não vive no século passado, na década passada. Fazer diferente exige mais do que apenas ser um eterno Aprendiz ou se achar um grande Mestre por conhecer tudo sobre determinado autor. A construção do escritor uma prática constante que nunca tem fim e que, em algum momento do caminho, tem a chance de dar certo. Mas isso você nunca vai saber se insistir em não ouvir os outros Aprendizes, Oficiais e Mestres da sua Corporação. Afinal de contas, todo mundo começa como um zé-ninguém sem dinheiro no bolso e uma motivação nas mãos, por mais estranha e controversa que ela pareça ser.
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Os ventos da guerra jogam tudo pro alto, mas também o fazem os ventos da mudança.