Após passar pelo portão com sua originalidade única, Ferona suspira aliviado. Ele finalmente pode entrar no trem da aprovação e seguir em sua Jornada de Natal. Entrando na cabine especial reservada somente para ele, Ferona percebe que sua passagem VIP não era tão VIP assim.
Em um dos bancos da frente, está sentado um jovem de pouca idade vestido de maneira simples e exemplar. Em sua cabeça, uma boina marrom. Em suas mãos, um livro. E, sob as lentes, um olhar que contempla, entediado, a ausência de paisagem. Enquanto Ferona se aproxima dele, o estranho rapaz desvia rapidamente seu olhar da janela e, fixando-o no escritor, brada:
— Eita, cabra, que demora da moléstia! Vamo, vamo, senta logo que eu tô atrasado já! E não vem com essa de ir na janelinha, não! Tu nem chegou direito e eu já num fui com a tua cara. Já vi que esse vai ser um Natal daqueles...
Fino como um palito de fósforo e tão irascível quanto, o Espírito do Roteiro nos levará para passear no extremo mais quente das descrições. Nessa primeira postagem de uma série de Extremos Descritivos — no melhor estilo Natalino —, a gente vai conversar um pouco sobre o valor das descrições e o quanto a falta delas pode impactar na construção de um bom texto.
Portanto, antes de dormir, pegue sua lamparina e acompanhe seus fantasmas do Natal em mais uma jornada metafísica. Só não esqueça de levar um casaquinho; as coisas podem ficar um pouco tempestuosas caso mais Espíritos apareçam pelo caminho.
O apito do trem soa algumas vezes e você entende que a hora está chegando. Sentado ao lado daquele Espírito, Ferona não para de bater os pés e esfregar suas mãos. Suando frio, ele olha pela janela e não vê nada exceto a escuridão. Nenhuma alma viva. A cada segundo, o sonho da noite passada parece mais distante. E é tudo o que parece mesmo: um grande e estúpido sonho que não poderia ser real.
— Eu nunca vi autor mais desconfiado e besta. Anda logo, cabra, eu não tenho o dia todo, não. E você num me estresse que eu já tô por aqui com essa lenga-lenga de Natal! Agora, olha pra lá, já vamo chegar onde eu preciso.
Ferona dá uma olhadela pela janela oval, quase sem se mexer. Lá fora, agora uma cena é estampada: a terra urge com a seca, as árvores retorcidas parecem aproveitar a vida, o céu não demonstra nenhum sinal de fertilidade. É um grande semiárido que parece deixar o Espírito feliz.
Um dos maiores erros dos autores iniciantes é misturar as coisas. Escrever em prosa é muito diferente de escrever o que parece ser legal ou atrativo para o autor. Até porque, muitas vezes, ele está acostumado com o tipo de narração de filmes, séries, animes e histórias em quadrinhos. Quando consumimos muito certo tipo de produto, a tendência é que nosso modo de criação se aproxime cada vez mais do que estamos consumindo. Como já conversamos na postagem de Voz do Escritor, isso é um processo normal e que somente vem a acrescentar ao produto final: ao seu texto, à sua história, à sua light novel.
Porém, é justamente aí em que precisamos ser cautelosos. Do mesmo jeito que incorporamos trejeitos de autores após lê-los por um tempo, também o fazemos para aspectos gerais da narração. Quando nossa única referência são mangás ou filmes, nosso jeito de escrever se molda a isso e torna-se rápida, ríspida, calorosa e afobada. Nesse tipo de mídia, as coisas precisam ser assim. Mas você não está escrevendo nada disso. O que você está se propondo a escrever é uma narrativa em formato de romance.
Esse é o típico arquétipo de um autor que escreve com poucas descrições: vindo de uma tradição de outras mídias mais rápidas, o único jeito que ele encontra para expressar suas ideias é através dos moldes que consumiu. É claro, você simplesmente pode optar por escrever com pouco texto também, pensando que light novels precisam ter muito diálogo e pouca descrição — o que, se clicar aqui, vai descobrir ser um grande mito. Ou, talvez, esse seja seu estilo particular de escritor e ninguém poderá mudar esse fato consumado!
O trem apita. Empurrando Ferona para o lado, derrubando-o do banco, o Espírito se levanta e anda apressado para fora dali. Não precisava falar duas vezes: Ferona já tinha entendido muito bem o recado. Estava na hora de conversar um pouco ali fora, na estação de madeira, quente e velha, da Primeira Parada.
Oito anos depois de sua morte Yuuto que agora se chama Jason Black Wolf. Descendente de um clã de caçadores e, esta indo para a praça no centro da vila Wind Silver onde o oráculo distribuirá as placas de status para as crianças na faixa dos sete a oito anos.
Havia ali pelo menos 15 crianças incluindo a sua amiga de infância Stella Wind Silver filha do Pretor da cidade. O nome de sua família vem da sua herança, uma espada de prata com um espírito do vento selado em sua lamina, por esse motivo ela é chamada de Lamina do Vento de Prata.
Era impossível que tivesse algo haver com alguma característica genética. Stella assim como seu pai e seus irmãos tinha cabelos vermelhos e olhos azuis. Por causa disso e de suas travessuras Jason começou a chamá-la de pimentinha.
— E ai pimentinha.
Nesse texto, o personagem principal morre na vida real e renasce como um herói lendário em um mundo com características de RPG. Após conseguir seus atributos, temos um time-skip de alguns anos e ele aparece assim, nesse lugar.
Na verdade, a única pista que temos desse lugar completamente novo é somente que a praça se chama Wind Silver. Veja bem: é um mundo novo, totalmente inventado, com elementos que podem ou não se parecer com a realidade. Os personagens provavelmente passarão por ali mais vezes, além de grande parte do capítulo continuar nesse lugar. Aqui, seria muito bem-vinda uma descrição de algumas linhas situando o leitor acerca das principais características do lugar: está lotado? Como são as coisas em volta da praça? É um campo aberto? É no meio da cidade? Essas e inúmeras outras perguntas podem revelar muita coisa sobre a praça e, mais ainda, despertar o sentimento de pertencimento.
Talvez esse seja o principal papel das descrições: fazer pertencer. Fazer com que o leitor se sinta envolto no mundo em que ele foi convidado a entrar, fazer com que as pessoas que ali existem sejam pessoas vivas e ativas na memória; que elas ganhem vida, que façam o leitor se recordar de pessoas e lugares pelos quais já passou. Quanto mais próximo o leitor estiver, quanto mais ele se sentir pertencido ao mundo criado — seja ele inventado, baseado na realidade ou locado em um local qualquer do mundo real —, mais importante a sua história se tornará. Para você, ela provavelmente já é. Mas para seu leitor, ela tem que merecer esse posto.
Assim como as descrições podem se moldar à vontade do escritor em seu conteúdo, elas também o fazem na sua forma. Na postagem de Parágrafos, nós iniciamos a discussão sobre o papel da boa forma no andamento de um texto. Um parágrafo que não respeita uma estrutura básica, que não usa a pontuação de maneira adequada ou que, simplesmente, parece não se importar com as descrições, torna todo aquele trecho menos interessante. Em cenas de luta, por exemplo, a atenção na estruturação dos parágrafos deve ser redobrada: não só o leitor tem de estar imerso na narrativa, mas ele precisa entender o que está acontecendo naquele embate. O leitor não só deve pertencer, mas deve compreender e, mais ainda, se manter.
Se manter? Sim, se manter preso à narração. Quem faz esse papel de prender o leitor enquanto não há diálogos são justamente as descrições. Através delas, é possível que o escritor mantenha um fluxo constante de acontecimentos e apontamentos que melhor situam seu leitor na situação e o façam ter uma visão privilegiada dos acontecimentos. Quando esse fluxo é quebrado por intervenções constantes, ou seja, quando as descrições seguem um caminho muito mais egoísta — de descreverem somente o que o narrador impõe —, toda a história parece voltar para o plano da fantasia. Voltando pra lá, tudo parece um pouco mais sem graça.
Sentados no ponto de trem do semiárido do Roteiro, o Espírito contempla a paisagem. De alguma forma, aquilo parece o acalmar.
— Sabe, cabra, a falta de descrição é uma coisa muito ruim. Todo mundo perde. Mas quando elas tão lá, mas tão de um jeito ruim, eu acho que é pior ainda. Por isso que eu acho que muito escritor novinho desiste dessa peste: se tá ruim, ele para e faz um roteiro. Tem que continuar. Mas, pera, também, não é para ficar quebrando regra. Se for fazer, faz direitinho. De jeito maneira vai me escrever uma coisa assim, dá uma olhada nessa bomba.
Mas não é nada disso.
Eu escolhi o caminho antissocial. Não o contrário.
E não era para parecer uma frase de efeito.
Essa história é muito mais surreal. É a história de um idiota que não podia continuar na dele e precisava se meter no que não foi chamado.
Espera, isso não é spoiler?
Não, estava no prólogo já.
De toda forma, você quer saber o que vai acontecer em seguida, não quer?
Abri os olhos outra vez. Agora eu via o chão de concreto da sala de aula. Virei o rosto e vi um par de pernas brancas.
O que aconteceu? Eu caí de cara no chão.
Não faltou vontade de permanecer lá.
Dessa vez, o problema é que o trecho mais parece uma epopeia fantástica do que uma narração propriamente dita. Como as descrições são mais flexíveis, elas permitem certas brincadeiras com a forma. As próprias figuras de linguagem podem fazer isso muito bem. Contudo, quando seu narrador começa a se intrometer demais, todo aquele papo de pertencimento vai por água — ou fogo — abaixo. Quebrando totalmente a sequência da narração, com exposições desnecessárias (lembre-se: somente o necessário!) e um vai-e-vem do narrador consigo mesmo, o leitor fica de fora da situação, como um mero espectador. Sem estar inserido no texto, com um narrador inconveniente e que não descreve nada de maneira crível, o texto fica empobrecido, sem graça e nada natalino.
— A telepatia do escritor é um pouco mais sacana do que aquela que os super-heróis usam. A gente não quer controlar o nosso parêia, a gente precisa fazer ele ver o que ele precisa e o resto deixar ele pensar sozinho. Ler tem que ser assim, os dois fazendo junto, sabe, cabra? Mas, óia, acho que o trem já vai sair. E tu tem companhia. Vai pela sombra, macho!
O trem apita mais uma vez. Ferona se levanta do banco e se despede do Espírito, que o cumprimenta com um toque no chapéu. A espera não tinha sido tão demorada, mas parece que mais alguém além do nosso escritor estaria embarcando: vestida com um pesado casaco de neve e um gorrinho natalino, um homem de grande porte chegou correndo a passos largos. De onde veio? Ninguém sabe. Seguindo-o, Ferona se apressa e entra novamente no trem.
Mds, acabou de me descrever: ''Esse é o típico arquétipo de um autor que escreve com poucas descrições: vindo de uma tradição de outras mídias mais rápidas, o único jeito que ele encontra para expressar suas ideias é através dos moldes que consumiu'' Vc é vidente ou algo assim?
ResponderExcluirTem algum jeito de ser pouco descritivo, mas ainda assim descrever o mundo o suficiente para fazer o leitor se sentir pertencido ao mundo?
ResponderExcluirOlá, Josué
ExcluirAs descrições precisam ser claras e ajudar o leitor a visualizar melhor o que se passa. Quanto menos descrições forem utilizadas, mais precisas as descrições presentes na obra precisarão ser.
Pense que suas descrições devem conseguir responder o "onde" e "como" de forma eficaz. A melhor maneira para buscar novas formas de descrever, é claro, sempre será analisar os diferentes estilos descritivos. Muitas vezes, compreender como determinado autor utiliza suas descrições é a chave para melhorar a própria forma como tentamos descrever as coisas.
Passando aqui para dar meus dois centavos.
ExcluirGostaria de sugerir para você pegar algum dos livros mais recentes do Elmore Leonard, ou qualquer obra do Machado de Assis caso você lide bem com o contexto fora da nossa época.
Ambos economizam demais nas descrições, apenas entregando os detalhes cruciais para o entendimento da história, mas não deixam de ser grandes mestres do mundo literário.
O primeiro centavo, o Elmore, escreve coisas mais cheias de ação, mas trata de temas um tanto mais adultos. Se você já viu um dos filmes do Tarantino, famosos pelos excelentes diálogos "Tarantinoescos", saiba esses diálogos aclamados são todos baseados no estilo do Elmore, ele é o verdadeiro pai dos diálogos "Tarantinoescos".
O segundo centavo, o Machadão, ilustríssimo mestre, constrói muito da contextualização e ambientação pela narrativa introspectiva, o narrador-personagem quem modela o mundo. Ele trata temas mais cotidianos, relevantes à época dele, e é um verdadeiro professor de narração, sabe conduzir como ninguém. Se você gosta de um humor ácido sem ser vulgar, você vai adorar esse cara!
Espero ter ajudado pelo menos um pouquinho.
Abraços~
Entendi. Obrigado pelas dicas. Vou dar uma lida nesse Elmore. O 'Machadão' eu já li algumas vezes. Ele é absurdo.
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