Todos nós acreditamos em alguma coisa, seja acerca do mundo, dos outros ou de nós mesmos. Nossos personagens, assim como os escritores que os conceberam, também precisam acreditar em algo. Muitas vezes, é através dessa crença que surgem os conflitos mais interessantes e as oportunidades de desenvolvimento mais inesperadas de uma narrativa. Outro nome para a crença é visão de mundo: a lente pela qual o personagem (e você!) enxerga a própria realidade.
Hoje, conversaremos sobre as visões de mundo dos seus personagens — e as maneiras pelas quais você pode utilizá-las ao seu favor. Então, vambora?
Descubra como seu personagem vê o mundo (e brinque com isso)
Grande parte do trabalho do escritor é conhecer seus personagens em profundidade. Muitos métodos são sugeridos no momento da criação de um personagem: criar uma ficha, listar características, misturar personagens já existentes e assim por diante. Entretanto, nada disso vale a pena se o escritor não estiver disposto a aceitar que, grande parte do que faz um personagem ser bom, é aquilo que não é dito sobre ele.
Apesar de saber muitas coisas sobre seus personagens, várias dessas informações nunca chegarão a ver a luz do dia. Entretanto, isso não quer dizer que toda sua construção tridimensional não valeu de bulhufas nenhuma. Muito pelo contrário: apesar desses detalhes não aparecerem claramente, eles serão cruciais para que você escreva as reações de seus personagens com mais confiança. Mas reações a quê?
Ao mundo! A maneira pela qual o personagem reage ao que acontece com ele (e a volta dele), assim como os meios que ele escolhe para continuar avançando, são escolhas narrativas quase que totalmente dependentes da visão de mundo adotada pelo personagem.
Mas para que você saiba qual é essa visão de mundo, você precisa entender seus personagens. Pense em como eles vivem suas vidas e pensam sobre o grande esquema das coisas. Tente fazer uma lista de suas responsabilidades, as coisas que os irritam, seus momentos felizes, suas visões político-ideológicas, seu engajamento a comunidades (desde família até o grupo de aventura). Agora você já consegue ter uma perspectiva mais profunda sobre os grupos nos quais seu personagem se insere, do que ele gosta e das coisas que o irritam. Legal.
Está na hora de brincar com isso, então. Pegue sua bela lista e mude-a. Não siga seu primeiro impulso de organizar tudo em caixinhas bonitinhas. Nossa primeira versão dessa listinha costuma ser previsível — e nós não queremos tanta previsibilidade, certo?
Suponhamos que você listou as características de um personagem que não se importa com o mundo. Ele é apenas um colegial qualquer, sentado perto da janela, rabiscando coisas no caderno, que dorme o dia todo depois que chega da escola.
Ok, mais um para os milhões de personagens assim. Vamos refinar isso.
E se esse cara, na verdade, se importa muito com as pessoas — mas só com aquelas que ele conhece? Talvez seja porque ele precisa sofrer junto da pessoa para, então, ser capaz de se importar de verdade. Talvez isso aconteça porque, em primeiro lugar, ele não espera que os outros se importem com ele também. Mas, talvez, ele perceba que os outros podem se importar com ele quando algo acontecer.
Traga as visões de mundo dos personagens para situações reais
Nós já falamos bastante sobre o tal do "Mostre, não conte". O mesmo serve para as visões de mundo. Não é legal ficar falando que "Ela odiava todos os humanos e não se importava que eles fossem dizimados" ou que "Ele se importa tanto com as pessoas que chega a negligenciar sua própria saúde".
Preencha a rotina dos seus personagens com evidências de suas visões de mundo. Dessa forma, os leitores podem perceber um padrão de ação em como seu personagem vive, deixando tudo mais autêntico. Essas evidências podem ir desde o jeito de preparar comida até o jeito de escolher as magias no mundo mágico. Lembre-se que as escolhas são o modo pelo qual as visões de mundo aparecem e se revelam ao leitor. Visões de mundo diferentes produzem escolhas diferentes, mesmo que a situação seja a mesma.
Um personagem que não se importa com o resto da humanidade não teria razão para assistir a canais de notícias ou até mesmo ter uma televisão. Talvez ele não tenha nem redes sociais, afinal, nada daquilo importa mesmo. Talvez ele invente uma desculpa que não precisa de nada dessas coisas porque não tem tempo para tais baboseiras; está ocupado demais estudando e trabalhando. Mas você sabe o verdadeiro motivo dessas escolhas. E, visualizando as cenas certas (aquelas que você planejou no tópico anterior), seu leitor também será capaz de ligar os pontinhos. Nesse momento, tudo fará sentido. E será muito legal.
Confronte as visões de mundo com os objetivos pessoais mais importantes
Agora que você já conhece as visões de mundo dos seus personagens e teve um gostinho de como apresentá-las naturalmente, está na hora de dar o último passo. Escolher quais visões de mundo de quais personagens são mais importantes para a história e confrontá-las!
Coloque seu personagem em situações que confrontem sua perspectiva, seja com relação a si mesmo ou aos outros. Faça com que esse novo problema esteja repleto de tensão ou, pelo menos, seja desconfortável para o personagem que o vive.
Nosso personagem odeia as outras pessoas, mas e se uma bolsa de estudos para sua faculdade dos sonhos viesse com um preço: se tornar o representante da sala? Ou, talvez, o pai de um dos colegas (que admirava nosso protagonista por suas boas notas) peça a ajuda dele para cuidar de seu filho que acabou de sofrer um acidente esquisito, envolvendo um mistério que envolve a família do protagonista? O que o personagem fará: continuar agarrado a sua visão de mundo ou caminhar em direção ao seu objetivo?
Pense aí em todas as cenas de confrontação que seus personagens podem viver. Depois, pense no que aconteceria com a visão de mundo desses personagens: continuaria a mesma, mudaria um pouco ou o personagem tentaria se sabotar para sair disso logo?
Impasses. Conflitos. Escolhas. Visões de mundo. Muitas vezes, é disso que seu personagem precisa.
Não de um poderzinho novo.
E esse é o fim da postagem de hoje! Espero que tenha dado para perceber como as visões de mundo são importantes para enriquecer os personagens e motivar sua mudança. Através dos pontos de vista e das ações deles derivadas, os personagens são capazes de viver em uma condição intrinsicamente humana que conversa com os leitores e com o próprio autor: todos estamos condenados à liberdade.
Te vejo na próxima postagem!
Sempre gosto de me colocar no lugar dos personagens: o que eles pensariam em determinadas situações. Adorei a postagem!
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