O ano pode ter mudado, mas nossos Caçadores continuam os mesmos! Nessa primeira caçada de 2019, vamos discutir assuntos muito importantes para quem está começando: o que significa "mostre, não conte"?; "o quanto devo mostrar e o quanto devo contar?"; "como saber se essas descrições são descartáveis?"; "como introduzir a trama?" e outros tópicos que merecem toda a atenção possível.
Pronto para dilacerar algumas descrições e trechos da narração? Que seja, não há mais tempo para se preparar: a primeira Caçada de Janeiro acabou de começar!
O nome da obra foi modificado para não levar a maiores constrangimentos. Todos os dados dos
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LEGENDA
1. Vírgulas
a) Amarelo: Eliminar a vírgula sem piedade.
b) Azul: Trocar por ponto melhora o fluxo.
c) "[,]": Introduzir vírgula.
2. Marcação dos erros
a) Vermelho: Ortografia.
b) Laranja: Pontuação.
b) Verde: Descrições
c) Azul: Diálogos.
d) Roxo: Narração.
e) Sublinhado: Consideração especial.
I. OS PROBLEMAS DO REI
Começando com uma história vinda diretamente da Idade Média, logo no primeiro parágrafo já podemos fazer algumas considerações. Repare no trecho "assim como todo o mundo". Devido à pontuação do parágrafo, esse trecho pode pertencer tanto à primeira parte "O reino do soberano Florence está infestado de doenças (assim como todo o mundo)" ou à segunda, necessitando do acréscimo de um "em": "(Assim como em todo o mundo), corpos levados pela chuva e ratos por toda a parte são coisas comuns do dia-a-dia." As duas hipóteses parecem plausíveis, certo? Mas devemos escolher só uma para tirar esse duplo sentido. Como a segunda hipótese mexe mais com o texto, acrescentando um termo, vamos imaginar que: "O reino do soberano Florence está infestado de doenças, assim como todo o mundo" é o trecho correto. Assim, fechamos a primeira informação: o reino e o mundo estão infestados de doenças.
E o que fazer com a vírgula que vinha depois? Nós trocamos ela por um ponto final. O ponto final faz o papel de separar informações diferentes, ajudando a manter o ritmo e a coesão do texto. Na primeira parte, falamos sobre as infestações. Agora, dizemos que os corpos e os ratos são comuns. Ainda que relacionadas, são informações totalmente distintas: logo, precisamos de um ponto final para separá-las. Mas parece que tem algo estranho com uma frase ali, note a marcação em roxo (narração).
Perceba como temos duas ideias juntas que se passam em tempos diferentes, colocadas como se passando ao mesmo tempo: os corpos foram levados pela chuva (não estão sendo levados a todo o tempo), mas os ratos ficam por toda a parte, a todo o tempo. E como podemos melhorar isso? Podemos tentar colocar essas ações acontecendo ao mesmo tempo, já que o narrador disse que são frequentes:
E a parte final do parágrafo, sobre as coisas comuns e a higiene? Bem, se só com aquele trecho já podemos ver que realmente são frequentes e que a higiene é precária, o resto dessa frase e a próxima podem ser eliminadas, já que o autor está dizendo a mesma coisa duas vezes.
Esse tipo de erro é menos perceptível, mas ele é muito danoso à narração. Por vezes, você pode acabar dizendo a mesma coisa mais de uma vez e não perceber isso. Nosso autor nos disse que existem corpos e ratos por toda a parte, então, implicitamente, também está nos dizendo que a higiene é precária. O leitor percebe que isso é um problema somente com essa visão, não há necessidade de esclarecer. Isso é visível e o resto, portanto, é descartável. Muito cuidado com os exemplos e as descrições que menos completam e mais deixam redundante a informação.
E o que fazer com a vírgula que vinha depois? Nós trocamos ela por um ponto final. O ponto final faz o papel de separar informações diferentes, ajudando a manter o ritmo e a coesão do texto. Na primeira parte, falamos sobre as infestações. Agora, dizemos que os corpos e os ratos são comuns. Ainda que relacionadas, são informações totalmente distintas: logo, precisamos de um ponto final para separá-las. Mas parece que tem algo estranho com uma frase ali, note a marcação em roxo (narração).
Corpos levados pela chuva e ratos por toda a parte são coisas comuns do dia-a-dia.
Perceba como temos duas ideias juntas que se passam em tempos diferentes, colocadas como se passando ao mesmo tempo: os corpos foram levados pela chuva (não estão sendo levados a todo o tempo), mas os ratos ficam por toda a parte, a todo o tempo. E como podemos melhorar isso? Podemos tentar colocar essas ações acontecendo ao mesmo tempo, já que o narrador disse que são frequentes:
"Os corpos são levados pela chuva e os ratos estão por toda a parte".
E a parte final do parágrafo, sobre as coisas comuns e a higiene? Bem, se só com aquele trecho já podemos ver que realmente são frequentes e que a higiene é precária, o resto dessa frase e a próxima podem ser eliminadas, já que o autor está dizendo a mesma coisa duas vezes.
Esse tipo de erro é menos perceptível, mas ele é muito danoso à narração. Por vezes, você pode acabar dizendo a mesma coisa mais de uma vez e não perceber isso. Nosso autor nos disse que existem corpos e ratos por toda a parte, então, implicitamente, também está nos dizendo que a higiene é precária. O leitor percebe que isso é um problema somente com essa visão, não há necessidade de esclarecer. Isso é visível e o resto, portanto, é descartável. Muito cuidado com os exemplos e as descrições que menos completam e mais deixam redundante a informação.
Pois bem, agora vamos adentrar mais no problema dessa história toda: veja a marcação do segundo parágrafo:
Primeiro: o "se" ali é descartável. Segundo: ainda que isso seja uma informação legal de saber, por que está aqui? Somente para dizer que os próximos do rei não é uma exceção? Se é um hábito da população, a família real segui-lo é o mais lógico. Novamente, não há necessidade de dizer.
Aí a gente teria uma informação importante. Afinal, se todos fazem uma coisa e um certo grupo não faz, devem haver motivos para isso acontecer. Se esse fosse o caso, a descrição desse fato seria essencial. Mas como não é, ela pode ser retirada também. Perceba que a gente está falando sobre descrições, sobre o "mostrar". Calma, não estou dizendo para mostrar pessoas tomando banho! Mas um diálogo resolveria. Que é justamente o que o trecho seguinte deveria ser: de que vale dizer que o rei tá pensando sobre os problemas do povo? Qual o peso que isso tem? Um diálogo, uma cena, têm muito mais presença na narrativa do que somente um fato. Quando algo for importante para seu personagem, prefira mostrar ao invés de somente contar.
O problema da redundância parece descambar para outro: as descrições desnecessárias. Dê uma lida nos parágrafos posteriores. Temos um rei deitado na cama (de que importa a mão dele estar pra cima ou pra baixo, que ele tem olho verde ou que seu lençol é vermelho?). Com olhos vermelhos, por motivos que desconhecemos, ele decide sair do castelo. Certo, agora o autor vai falar sobre o passeio do rei até a parte de fora? Não antes de ele falar sobre a cor das flores, o tamanho da cama e dizer que tem insetos perambulando pelos lençóis. E a parte de cima da cama... Provavelmente os insetos perambulam por lá também, mas faltou um conectivo entre as duas informações.
"um grande exemplo é o hábito de se tomar banho apenas uma única vez ao ano".
Primeiro: o "se" ali é descartável. Segundo: ainda que isso seja uma informação legal de saber, por que está aqui? Somente para dizer que os próximos do rei não é uma exceção? Se é um hábito da população, a família real segui-lo é o mais lógico. Novamente, não há necessidade de dizer.
"Mas, Vong, e se eles tomassem banho?"
Aí a gente teria uma informação importante. Afinal, se todos fazem uma coisa e um certo grupo não faz, devem haver motivos para isso acontecer. Se esse fosse o caso, a descrição desse fato seria essencial. Mas como não é, ela pode ser retirada também. Perceba que a gente está falando sobre descrições, sobre o "mostrar". Calma, não estou dizendo para mostrar pessoas tomando banho! Mas um diálogo resolveria. Que é justamente o que o trecho seguinte deveria ser: de que vale dizer que o rei tá pensando sobre os problemas do povo? Qual o peso que isso tem? Um diálogo, uma cena, têm muito mais presença na narrativa do que somente um fato. Quando algo for importante para seu personagem, prefira mostrar ao invés de somente contar.
O problema da redundância parece descambar para outro: as descrições desnecessárias. Dê uma lida nos parágrafos posteriores. Temos um rei deitado na cama (de que importa a mão dele estar pra cima ou pra baixo, que ele tem olho verde ou que seu lençol é vermelho?). Com olhos vermelhos, por motivos que desconhecemos, ele decide sair do castelo. Certo, agora o autor vai falar sobre o passeio do rei até a parte de fora? Não antes de ele falar sobre a cor das flores, o tamanho da cama e dizer que tem insetos perambulando pelos lençóis. E a parte de cima da cama... Provavelmente os insetos perambulam por lá também, mas faltou um conectivo entre as duas informações.
Ou seja, quatro parágrafos de informação desnecessária para o andamento da história. Se a ambientação fosse feita no começo, com a descrição do sentimento do rei para com seu quarto, o que ele enxerga, os objetos mais importantes para ele e outros detalhes realmente interessantes (para conhecermos o personagem), aí seria outra história. Poderíamos nos sentir dentro do quarto, com aquelas pinturas majestosas e uma janela com vista para o reino. Mas o autor preferiu se prender demais a acontecimentos pequenos e irrelevantes, como a cor da parede, o tom da luz, a cor das flores e o tamanho da cama.
"Então, quando eu preciso e não preciso descrever?"
Vamos pensar nas descrições como mais uma das ferramentas que você tem para fazer seu personagem andar. É uma das rodas do seu carro: só com ela ou sem ela, seu carro não vai andar. Você não precisa ficar dando voltas em círculos com seu carro para ter a ilusão de estar saindo do lugar. Em vez disso, é mais fácil pegar a estrada e chegar ao seu destino. Algumas vezes você vai precisar dar uma parada, trocar o óleo e comprar algo pra comer; mas ainda está no seu caminho. Ou seja, ficar descrevendo o que não é necessário para sua história andar faz somente os pneus (e o leitor) ficarem carecas.
E qual é o trajeto que você vai percorrer, então? O que você tem ou não tem que falar? Isso vai completamente do que você entende como importante para a sua história. Algumas vezes, os quadros na parede do quarto do personagem podem revelar partes interessantes do passado dele. Em outras, os quadros são meros artefatos decorativos e de nada acrescentam à história. Não é como se a contextualização espacial (a descrição do ambiente) ficasse de fora, veja bem: você deve descrever o ambiente, mas faça isso tendo em mente o objetivo do seu personagem.
Por exemplo, seu personagem vai sair para comprar uma espada nova. No seu mundo, as lojas ficam com muito movimento de manhã e pouquíssimo movimento à noite. Falar que está de noite, que há poucas pessoas na rua... traz a ideia de que seu personagem não gosta de multidões (caso ele pudesse sair de manhã). Se uma loja chamou a atenção dele, mostre ela também. E as outras trinta? Se ele não prestou atenção, o leitor não precisa também.
Em síntese: descreva o que faz sua história andar; o que tem significado; o que importa para seus personagens. Se não tirar você do lugar (por quatro parágrafos), se não significar nada além de um objeto qualquer, sem importância para o personagem/para aquele momento; você pode riscar ela dali e colocar no lugar algo que importe mais ou, ainda, se o leitor conseguir preencher esse espaço sozinho, pode até mesmo não descrever.
Lembre-se: muitos quartos possuem camas grandes, mas nem todos possuem janelas para o reino.
Aqui, temos um pouco menos de coisa para falar. O que vale mais a pena ser comentado é aquele "Antes de se dirigir para fora da fortaleza" que, mais uma vez, continua atrasando a narrativa. Com essa entrada, já podemos ver que leremos mais um parágrafo de informação desnecessária. E, realmente, saber a cor das vestimentas do rei não é a coisa mais interessante do mundo. Muito menos saber que é comum vê-lo com o vestido amarelo e branco. Nesse caso, um melhor uso dessa informação (caso ela seja relevante, o que não parece ser o caso) seria não contar, mas mostrar.
Coisas como hábitos, costumes, trejeitos e peculiaridades do personagem ficam melhor e mais críveis quando dentro da ação, ou seja, dentro da história. Um dos guardas poderia comentar que o rei usa somente aquele vestido (o que, dependendo do tom, pode demonstrar um desafeto), por exemplo. Quando uma pessoa tem um hábito, as pessoas notam. E, mesmo que ele esteja sozinho, valeria a pena descrever ele executando essa ação mais do que dizer que ele tem o costume de fazer tal coisa. Se é notado, é visto e é descrito.
Aliás, aproveitando que estamos chegando no final dessa primeira seção. Escritores que têm pouco hábito de descrever costumam tentar driblar isso com construções de frase bastante... peculiares. Muitas vezes, colocar o adjetivo na frente do substantivo é um negócio que acontece. Em vez de falar "o quarto espaçoso", ele coloca "o espaçoso quarto". Tem algum problema com isso? Não. Mas é melhor falar na ordem correta? Com certeza, até porque pouca gente fala que está lendo um "ruim texto".
E o que esse texto nos mostrou na primeira página? Praticamente nada. Como conversamos na postagem de Primeiros Capítulos, Introdução de Personagem e Primeira Página; esse começo é o que justamente tem o papel de prender o leitor, de introduzir a história, de mostrar partes interessantes de tudo o que está acontecendo. Ainda que o autor possa ter uma história fabulosa e cheia de conflitos legais, de nada adianta se isso só vai ser mostrado na última página do primeiro capítulo.
Se fosse um livro físico e já publicado, tudo bem, até que a pessoa poderia se forçar a ler até o fim por ter comprado o produto. Mas como nossa publicação aqui é por capítulo, cada página importa. E se o que você contou até agora não teve importância alguma (ou muito pouca) ... Lamento, mas vai precisar voltar dez casas.
SOLUCIONANDO OS PROBLEMAS DO REI
(Há-a-atrás, por que, vocativo, onde-aonde)
(Para notar a transição de tempo verbal)
(Usos e não-usos da vírgula)
(Dicas gerais para começar)
(Como usar detalhes para guiar a narrativa)
(O perigo de colocar informações demais)
(Como fazer com que seu protagonista que comece a trama)
(Pois o espaço importa muito)
(O que falar e o que não falar nos primeiros momentos)
(Contar e não mostrar)
Oras, mas o Caçadores de Reprovações só teve uma novel essa semana? Pois é, a postagem já estava ficando grande demais só com os comentários desse texto. A segunda parte, na qual conversaremos sobre construção e pontuação de diálogos, vai sair semana que vem. Por isso, fiquem no aguardo! A Caçada de Janeiro ainda não terminou!
Críticas, comentários e sugestões são especialmente bem-vindos! O que achou do quadro desse mês? Tem alguma coisa para falar sobre os textos? Ficou alguma dúvida de algum erro não comentado? Sinta-se livre para falar!